Primeiro, foi a fila quilométrica em um açougue de Cuiabá, no Mato Grosso – maior Estado produtor e exportador de carne bovina do país -, para receber ossos. Depois, cariocas garimpando restos em um caminhão de ossos e pelancas descartadas por supermercados.
E assim, dia após dia, as imagens da fome vão voltando ao noticiário nacional.
Eram 19,1 milhões de brasileiros com fome em 2020, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). Em relação a 2018 (10,3 milhões), são quase 9 milhões de pessoas a mais nessa condição.
O auxílio emergencial que, no ano passado, em seu valor máximo (R$ 1.200), chegou a comprar duas cestas básicas e sobrar, agora, mesmo em seu maior valor (R$ 375) não compra nem 60% da cesta da região metropolitana de São Paulo.
Aumento de 85% no número de brasileiros com fome em dois anos
A pandemia do coronavírus teve um efeito devastador sobre a segurança alimentar no Brasil, revelaram estudos da Rede Penssan e da Universidade Livre de Berlin publicados este ano.
No país, a fome atingiu 19,1 milhões de pessoas em 2020, parte de um contingente de 116,8 milhões de brasileiros que convivam com algum grau de insegurança alimentar – número que corresponde a 55,2% dos domicílios, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Penssan.
A insegurança alimentar abrange desde a alimentação de má qualidade, passando pela instabilidade no acesso a alimentos, até a fome propriamente dita. O aumento no número de brasileiros passando fome, de 10,3 milhões em 2018, para 19,1 milhões em 2020, representa um crescimento de 85% em dois anos.
O resultado fez a Oxfam – organização internacional que atua no combate à pobreza, desigualdade e injustiça social – classificar o Brasil como um dos focos emergentes de fome no mundo, ao lado da Índia e da África do Sul.
De acordo com estudo do grupo de pesquisas Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy (Comida por Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares em uma Bioeconomia, em tradução livre), da Universidade Livre de Berlim, a insegurança alimentar é marcadamente desigual.
Os mais altos percentuais de insegurança alimentar são registrados em famílias com apenas um responsável pela geração de renda (66,3%). Isso se acentua ainda mais quando essa responsável é uma mulher (73,8%) ou uma pessoa parda (67,8%) ou preta (66,8%).
Também é maior nas residências com crianças de até 4 anos (70,6%), nas regiões Nordeste (73,1%) e Norte (67,7%) e nas áreas rurais (75,2%).
Menor consumo de carne bovina em 26 anos
Em 2021, o consumo de carne bovina no Brasil deverá ser de 26,4 quilos por pessoa, uma queda de quase 14% em relação a 2019, ano anterior à pandemia, e de 4% ante 2020. Esse é o menor nível registrado para consumo de carne bovina no país em 26 anos, segundo a série histórica da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), com início em 1996.
Até agosto, as carnes acumulavam aumento de preço de 30,8% em 12 meses, bem acima da alta de 9,68% da inflação geral, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A alta de preços da carne começou antes da pandemia, puxada pela demanda da China, cujo rebanho suíno foi fortemente afetado pela peste suína africana.
A tendência foi acentuada no ano passado pela alta do dólar, que estimula as exportações, reduzindo a oferta do produto no mercado interno. Pesaram ainda a seca, que piora a qualidade do pasto e aumenta a necessidade de uso de ração, elevando o custo de produção; e o menor abate de fêmeas, que são retidas pelos pecuaristas para produzir novos animais, aproveitando a alta de preços.
Então foi assim que a carne vermelha sumiu dos prato dos brasileiros mais pobres.
Consumo de pés de galinha e miojo
Outros indicadores da piora das condições de alimentação do brasileiro estão nos próprios alimentos consumidos.
Segundo dados da Abimapi (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães e Bolos Industrializados), o consumo de macarrão instantâneo movimentou R$ 3,2 bilhões em 2020, ante R$ 2,7 bilhões em 2019.
Em toneladas, o consumo cresceu de 167 mil para 189 mil entre os dois anos, refletindo o aumento da prática de cozinhar em casa durante a pandemia, mas também a perda de renda da população, que recorre ao miojo como um alimento barato.
Nos açougues, em meio aos preços proibitivos da carne, consumidores recorrem a cortes antes desprezados pela maioria, como pés e miúdos de galinha.
“Antes da pandemia se vendia cerca de 100 quilos de pé de frango no mês, agora estamos vendendo em torno de 250 quilos”, disse José Carlos Viale, dono de um açougue em São José do Rio Preto, ao Diário da Região.
“Sempre teve saída, mas as pessoas compravam em menor quantidade e para tratar animal. Agora, temos famílias que chegam a comprar dois quilos de pé e pescoço por semana”, relatou o empresário ao jornal.
Do Portal NS/Fonte: BBC
Nenhum comentário:
Postar um comentário