Foto: Divulgação/Polícia Civil
Alguém pedia recurso contra uma multa, a Justiça julgava improcedente e a decisão era encaminhada para o Departamento Estadual de Trânsito da Bahia (Detran). Lá, a conclusão tinha nome das partes, valores e resultados alterados, fazendo com que o órgão pagasse a terceiros quantias em torno de R$ 20 mil – o que aconteceu pelo menos nove vezes entre os anos de 2018 e 2019.
É assim que funcionava um esquema que envolve uma ex-assessora jurídica do Detran, responsável por colocar no sistema decisões judiciais em relação a recursos contra multas. Ela é suspeita de se valer de sua função para faturar, no mínimo, R$ 250 mil no período em que trabalhou no órgão.
A quantia era transferida para contas de pessoas próximas a ex-funcionária em Santaluz, município baiano a 272km da capital que batiza a Operação Santaluz, da Delegacia dos Crimes Econômicos e Contra a Administração Pública (Dececap), responsável pela investigação. Ao todo, sete contas foram identificadas pela delegacia, de pessoas que residem tanto em Santa Luz quanto em Salvador.
A Dececap não descarta também a participação de outros funcionários do órgão e conta com a análise de computadores, celulares e documentos apreendidos em residências dos suspeitos e na sede do Detran nesta quinta-feira (30) para confirmar se outros servidores estariam envolvidos.
Detalhes do esquema
Titular do Dececap, a delegada Márcia Pereira contou como a assessora, que não teve o nome revelado e ainda não tem mandado de prisão em aberto, operava para receber os pagamentos do Detran. “A função dela, em específico, era alimentar o sistema para pagamento. Ou seja, ela colocava no sistema o resultado e quanto a pessoa ou o Detran teriam que pagar, dependendo da decisão. Aí ela falsificava os nomes da decisão e a conclusão judicial, alterando de improcedente para procedente. Então, gerava os pagamentos para serem feitos pelo Detran para conta de amigos”, explica a delegada.
O crime só entrou na mira da delegacia após uma representação da Procuradoria Jurídica do Detran com a suspeita de falsificação de sentenças. Ainda de acordo com Márcia, a prática não era de fácil identificação porque os processos eram excluídos após as decisões e a computação no sistema era dada como certa. “Como a Justiça dava improcedência, esses processos eram extintos. Então, não havia como fazer a conferência via poder judiciário do que foi pago, para quem foi pago ou quando isso aconteceu”, detalha.
Apesar do que já foi encontrado pelos investigadores, a Dececap acredita que o rombo nos cofres públicos causado pela corrupção pode ser bem maior. “Já localizamos nove processos falsificados que somam R$ 250 mil, mas temos uma estimativa que esse valor é muito maior, porque ela oficiou nesse órgão de 2018 até 2020. A gente estima que esses desvios possam chegar até R$ 1 milhão”, diz Márcia Pereira, ressaltando que as contas citadas já foram representadas e, com certeza, serão alvos de bloqueio.
Detran e Corrupção
O Detran tem sido a casa das organizações criminosas que praticam crime de corrupção no estado. De fevereiro para cá, já são três operações deflagradas pela Polícia Civil: Mão Dupla, Cartel Forte e, agora, a Santaluz. A primeira investigou um esquema que desviou cerca de R$ 19 milhões através de fraude de licitação e execução de contrato em um processo irregular de contratação de uma fundação para prestar serviço de educação de trânsitos em escolas públicas. Já a segunda apurou uma organização criminosa que condenava placas em perfeito estado para trocas que favoreciam envovlidos que eram donos de empresas de emplacamento que lucravam com o aumento na demanda do serviço.
Procurado, o Detran, que declarou sua colaboração com a Justiça em todas as outras operações, salientou que o próprio órgão deu o pontapé inicial a investigação com uma auditoria interna que verificou os indícios de ilegalidade. “Ao tomar conhecimento dos fatos que incluía recebimento de valores pela então servidora, diante de decisões divergentes das que constam em processos judiciais, a Diretoria-geral do Detran-Ba determinou a imediata abertura de apuração, no âmbito administrativo, apresentando ainda notícia-crime na DECECAP”, escreve o Detran por meio de assessoria.
Perguntada se a sequência de operações no Detran poderia sugerir uma mesma organização criminosa com ramificações diferentes, a delegada Márcia Pereira descartou a possibilidade e disse que se tratam de crimes desconectados e salientou que a Polícia Civil continua atenta para descobrir outros esquemas. “São três operações com objetivos independentes. Às vezes, formam um vínculo pelo setor financeiro ser o mesmo [o Detran]. Porém, são esquemas diferentes e temos procedimentos diferentes instaurados para apurar. A Polícia Civil sempre está atenta a tudo que acontece e que chega para ser apurado. Continuamos com investigações em andamento para que possamos cumprir a nossa função da melhor forma possível”, conclui a delegada.
Mandados de busca e apreensão
Na manhã desta quinta-feira, treze mandados de busca e apreensão da Operação Santaluz foram cumpridos em pelo Departamento de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco), através da Delegacia dos Crimes Econômicos e Contra a Administração Pública (Dececap). Durante as buscas, além dos computadores, celulares e documentos encontrados que serão usados para novas fases da operação, os agentes encontraram, na casa da investigada, um cachorro e dois gatos em estado de abandono há cerca de oito dias, sem água e comida. Os animais foram encaminhados pelos policiais para o veterinário, e a ex-assessora do Detran também responderá por maus tratos.
A Operação Santaluz integra o ciclo de operações Cangalha, que consiste em uma série de ações de enfrentamento a organizações criminosas em todo o Nordeste do Brasil, através da Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça (SEOPI/MJ).
Do Portal NS/Fonte:Correio24h