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segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Emenda parlamentar favorece uso político da água, impõe indústria da seca e agrava drama secular

Caixas-d’água da Codevasf estocadas em um depósito na cidade de Santa Filomena (PE) | Foto: Mathilde Missioneiro/Folhapress

A adoção das emendas parlamentares como uma das molas propulsoras das políticas de convivência com a seca deve aprofundar o cenário de contrastes no semiárido brasileiro, que incluem as famílias que precisam andar quilômetros para buscar água e as caixas-d’água que apodrecem guardadas por prefeituras.

A dinâmica de distribuição dos equipamentos de armazenamento de água sem planejamento, apontam especialistas, favorece o clientelismo, cria abismos entre municípios, inverte prioridades e aprofunda o problema secular da indústria da seca.

Na série de reportagens Política da Seca, a Folha de S.Paulo percorreu cinco estados do Nordeste e flagrou efeitos dessa distorção no dia a dia de moradores ignorados pelas emendas e pelas estatais, com famílias que muitas vezes têm que escolher entre a compra de comida e de um garrafão de água.

Em âmbito federal, a distribuição de cisternas e perfuração de poços é feita por órgãos como a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) e o Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), ambos entregues a líderes do centrão por Jair Bolsonaro (PL) e mantidos com esses mesmos dirigentes pelo presidente Lula (PT).

Em geral, o planejamento é deixado em segundo plano. São os chamados “barões da água”, políticos com influência em Brasília, que definem o destino dos recursos por meio de emendas, turbinadas nos últimos anos. Os equipamentos são escolhidos a partir de um catálogo, como uma espécie de “loja de políticos”.

“Isso é talvez uma das maiores evidências da permanência desse modelo clientelista no Brasil. E não é aquele clientelismo que não é menos danoso, mas ocorre na esfera local e causa um esvaziamento de uma agenda mais propositiva. É num nível nacional”, afirma a cientista política Priscila Lapa, professora da Universidade Federal de Pernambuco.

As distorções nos investimentos são ainda mais graves em regiões como a do semiárido brasileiro, região que inclui parte dos estados do Nordeste e o norte de Minas Gerais.

Conforme explica o engenheiro agrônomo João Suassuna, especialista em hidrologia e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, o cenário de escassez demanda uma gestão eficiente dos recursos hídricos e dos investimentos públicos.

“A água é um recurso finito, sua busca tem que ser planejada e seu uso deve ser feito com a parcimônia devida. É preciso que essa pouca água que existe seja bem distribuída para uso da população”, afirma.

O pesquisador destaca que a região Nordeste possui cerca de 70 mil represas com um potencial de armazenar 37 bilhões de metros cúbicos de água, o que representa o maior volume represado em região de semiárido do mundo.

A prioridade, afirma, deveria ser a criação de uma infraestrutura para que essa água seja distribuída de forma bem planejada. Mas, em geral, o que prevalece são as demandas paroquiais de parte dos políticos, que nem sempre vão ao encontro das necessidades de determinada região.

Um exemplo, mostrado nas reportagens da Folha, é a aquisição de reservatórios com baixa capacidade de armazenamento, que demandam o abastecimento recorrente com carros-pipa para que famílias tenham água nos períodos de seca.

“Temos um histórico de maus políticos que costumam governar com o sofrimento e a miséria do povo. Essa questão do carro-pipa, em que o abastecimento depende das prefeituras, é uma coisa cruel. Tem muito prefeito que não abastece as casas de quem não votou nele”, afirma Suassuna.

A indústria da seca foi definida pelo economista paraibano Celso Furtado (1920-2004) como um modelo de enfrentamento aos efeitos da estiagem que tem como consequência o enriquecimento da elite econômica agrária e a manutenção do poder de parte dos líderes políticos da região.

O próprio conceito de Nordeste como uma região do Brasil surge atrelado à questão hídrica, conforme aponta o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior no livro “A Invenção do Nordeste e Outras Artes”.

A expressão aparece pela primeira vez em um documento público brasileiro em 1919, quando foi instaurada a Inspetoria Federal de Obras contra as Secas, na gestão do presidente Delfim Moreira. O órgão foi criado em resposta à estiagem de 1915, cujos efeitos perduraram nos anos seguintes.

A partir da década de 1920, políticos e intelectuais, dentre os quais se destacava o sociólogo Gilberto Freyre, passaram a trabalhar o conceito de Nordeste do ponto de vista político e cultural.

No governo Juscelino Kubitschek, nos anos 1950, Celso Furtado capitaneou a criação da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), autarquia voltada para o desenvolvimento regional. A criação do Nordeste no formato atual, com nove estados, só seria oficializada em 1970.

Ao longo das últimas décadas, a questão hídrica esteve no epicentro das decisões políticas para o desenvolvimento do Nordeste. Foram realizadas grandes obras de sistemas de armazenamento e abastecimento de água, muitas delas sob a marca de suspeitas de corrupção.

Em 2005, Lula decidiu fazer da transposição do rio São Francisco a sua principal obra de recursos hídricos na região. Alvo de controvérsia desde a época de sua concepção, o projeto consumiu mais de R$ 16 bilhões e atualmente é objeto de um jogo de empurra entre União e estados para o custeio do sistema.

Na avaliação de João Abner Guimarães Júnior, especialista em recursos hídricos e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, grandes obras hídricas feitas sem critérios técnicos são uma constante na região, em governos de diferentes partidos.

“A verdadeira indústria da seca são as grandes obras superfaturadas e feitas sem nenhum critério. Esta é a indústria da seca no atacado. O semiárido é um reserva de mercado da indústria das secas”, afirma o Guimarães Júnior.

Ele defende soluções que passam por políticas públicas e obras talhadas para realidade de cada região, recuperação da infraestrutura hídrica e a integração de sistemas hídricos por meio de adutoras que garantam capilaridade ao abastecimento.

Isso passa por gastar melhor os recursos que alcançam uma fatia robusta do orçamento federal.

Dados do Siga Brasil, plataforma mantida pelo Senado, apontam que o orçamento de 2023 destinou R$ 2,3 bilhões para recursos hídricos, contemplando obras como a transposição, Adutora do Agreste, Canal do Sertão e Vertente Litorânea.

Iniciativas como o Programa Cisternas, por outro lado, foram esvaziadas nos últimos anos saindo de 149 mil equipamentos instalados em 2014 para 5.946 no ano passado. O governo Lula anunciou a retomada do projeto com investimento de R$ 562 milhões, beneficiando 60 mil famílias.

Enquanto isso, a distribuição de cisternas, tanques e caixas-d’água por meio de emendas segue como o carro-chefe de órgãos federais como a Codevasf e Dnocs, modelo que tem procurado distensionar relação do governo Lula com líderes de partidos como PP e União Brasil, que controlam as estatais.

Diz a cientista política Priscila Lapa: “A ampliação do Legislativo na produção do orçamento pode ser algo bem-vindo por desconcentrar a decisão política. Porém isso deveria ver acompanhado de uma outra cultura política de acompanhamento pela sociedade e órgãos de controle. Não consigo enxergar isso acontecer no curto prazo no Brasil.”

Do Portal NS

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