“O mulungu de bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo”. O trecho, que abre o capítulo “O Mundo Coberto de Penas”, do clássico “Vidas Secas”, refere-se ao movimento migratório, principalmente de aves. No romance, o fenômeno anuncia a hora de a família de Sinhá Vitória e Fabiano enfrentarem novamente a estrada, rumo à luta pela sobrevivência em um cenário marcado pela precariedade e pela escassez.
Publicada em 1938, a ficção de Graciliano Ramos (1892-1953) chega aos 80 anos com motivos de sobra para ser revisitada. Afinal, deslocamentos humanos forçados, como os abordados na narrativa, nunca deixaram de existir e, nos últimos anos, têm aumentado, atingindo números alarmantes, que extrapolam os índices registrados décadas atrás.
De acordo com o relatório divulgado no ano passado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, 65,6 milhões de pessoas encontravam-se nessa condição em 2016, em razão de problemas como fome, pobreza, perseguições, guerra e conflitos armados. Tal crise humanitária deixa evidente como os temas abordados em “Vidas Secas” seguem bastante atuais. “A questão dos retirantes continua visível no nossos dias, mas eles aparecem agora com outro nome: refugiados. São pessoas que estão completamente abandonadas, têm que sair de onde estão; eles são os ‘deserdados da terra’, como falava Graciliano”, pontua Wander Melo Miranda, que é professor da faculdade de letras da UFMG e especialista na obra do autor.
A maneira como a narrativa dialoga com o presente, para Ricardo Ramos Filho – que é neto de Graciliano e pesquisador do legado do avô –, demonstra que “o livro nunca foi um escrito regionalista”. “‘Vidas Secas’ é um romance que poderia acontecer em qualquer região do mundo em que houvesse retirantes. Basta visualizarmos países como a Síria ou a Bósnia (e Herzegovina) de não muito tempo atrás. Nesses países, encontramos pessoas em situação de penúria muito semelhante à da família de Fabiano e Sinhá Vitória. Nesse aspecto, não podemos classificar esse título como um romance regionalista. Isso seria reduzir a obra de Graciliano a um determinado espaço geográfico, o que não é justo”, frisa Ramos Filho.
Tendo em vista a relevância da ficção, haverá uma série de comemorações a serem desenvolvidas ao longo do ano. Uma delas, segundo Ramos Filho, será a publicação de uma nova edição do volume, prevista para sair no segundo semestre, pela editora Record, com algumas novidades. “Nós estamos pensando em fazer uma edição baseada nos manuscritos de ‘Vidas Secas’ que fazem parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Há uma ideia de começar cada capítulo do livro com uma página manuscrita dos originais”, afirma ele.
Contexto
Ramos Filho também recorda que “Vidas Secas” não foi escrito para ser romance e surgiu a partir de uma série de contos. O primeiro deles é o que retrata a morte da cachorra Baleia. “Depois, Graciliano escreveu os outros textos e reuniu tudo até formar o livro. Por esse motivo, ‘Vidas Secas’ é diferente dos três primeiros romances de Graciliano. Ele lança ‘Caetés’, em 1933; ‘São Bernardo’, em 1936; e ‘Angústia’, em 1936. Todos esses foram escritos com estrutura de romance mesmo e, em comum, trazem um narrador em primeira pessoa – diferentemente de ‘Vidas Secas’, que é fragmentado e narrado em terceira pessoa”, observa ele.
O célebre título veio à luz cerca de um ano após Graciliano deixar a prisão, durante a ditadura do governo de Getúlio Vargas (1882- 1954). Ele foi encarcerado sem passar por um julgamento, tornando-se um preso político, vítima da perseguição ao comunismo, embora só tenha se filiado ao partido em 1945. Ramos Filho sublinha que esse acontecimento teve um impacto direto na trajetória literária do escritor.
“A prisão dele faz com que a obra de Graciliano ganhe outra direção. Ele tinha publicado três romances, mas quando se vê solto no Rio de Janeiro, em 1937, desempregado e com a família para criar, ele precisava fazer dinheiro rápido e só sabia fazer isso escrevendo. Então, ele opta por conceber textos mais curtos, como contos, que poderiam ser rapidamente publicados em jornal. ‘Vidas Secas’ foi escrito dentro dessa nova necessidade de subsistência”, relata Ramos Filho.
Além disso, a injustiça sofrida por Graciliano encontra ecos diretos em “Vida Secas”, como pode ser percebido no episódio em que Fabiano é preso pelo Soldado Amarelo sem nenhuma justificativa. “Assim como Fabiano é preso sem motivo, Graciliano é encarcerado sem um processo formal. No livro, ele trata dessa arbitrariedade da lei, que não funciona como deveria e apenas está a serviço de alguns”, afirma Miranda.
Ramos Filho completa que Graciliano buscava intervir nessa realidade a partir de sua literatura. “A arma dele sempre foi a pena. ‘Vidas Secas’ é realmente uma denúncia contra a violência infligida aos mais pobres e contra a incapacidade do governo de fazer algo que minorasse o sofrimento da população frente à seca”, diz.
O compromisso de Graciliano com um projeto que alia ética e estética, para Miranda, também se reflete na maneira como o autor “abriu espaço para a linguagem dos indivíduos que sofrem”. De acordo com ele, não é por acaso que personagens como Fabiano e Sinhá Vitória são apresentados quase desprovidos da capacidade de comunicação. “Isso reforça a dificuldade de eles encontrarem uma linguagem para expressar o sofrimento que é a dor por meio do discurso verbal”, completa Miranda.
Para ele, ao praticar essa abordagem, Graciliano evitou “falar por aqueles que sentem a dor”. “O sofrimento é da ordem do irrepresentável, e Graciliano abre caminho para a reflexão sobre isso. Por isso a obra dele é grande e segue atualíssima”, conclui Miranda. (Informações do jornal O Tempo).
Do Portal Interior da Bahia
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