quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O estacionamento rotativo pago (zona azul) e a ilegalidade de aplicação da multa baseada em aviso de irregularidade

Trata da implantação do estacionamento rotativo pago (zona azul) nos municípios, criticando a prática comum de aplicação da multa de trânsito baseada em "aviso de irregularidade" emitido por funcionário de empresa concessionária do serviço público.


Pretende-se, a partir das considerações a seguir desencadeadas, demonstrar a ilegalidade da prática que tem sido comum em vários municípios brasileiros, em que vigora o sistema de estacionamento rotativo pago, conhecido como “área azul” ou “zona azul”, de aplicação da multa de trânsito do artigo 181, inciso XVII, da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro – CTB), decorrente de auto de infração elaborado por agente de trânsito que não presenciou o cometimento da infração de trânsito, mas se baseia em “aviso de irregularidade” encaminhado ao órgão de trânsito pela empresa concessionária do serviço público.

O que se pretende discutir, portanto, não é a legalidade de implantação do sistema, nem tampouco a aplicação de multa de trânsito àqueles que descumprirem a regulamentação estabelecida, o que será devidamente justificado nas próximas linhas; a questão que merecerá nossa crítica refere-se ao procedimento adotado em alguns municípios, nos quais a irregularidade (falta de cartão, cartão rasurado, horário excedido etc) é detectada por funcionário de empresa concessionária, operadora do sistema, o qual emite “aviso de irregularidade”, colocando-o no pára-brisa do veículo, com prazo para que o seu condutor se dirija aos endereços indicados e faça o pagamento de uma determinada “taxa de regularização”; não o fazendo, seus dados passam a constar de relação com os veículos “notificados”, a qual é encaminhada ao órgão executivo de trânsito municipal, para aplicação de multa de trânsito do artigo 181, XVII, do CTB (Estacionar o veículo em desacordo com as condições regulamentadas especificamente pela sinalização – placa Estacionamento regulamentado), muitas vezes, para dar “aparência de legalidade”, antecedida por auto de infração elaborado por agente de trânsito credenciado, como se este tivesse presenciado a infração de trânsito.

Destarte, verifiquemos inicialmente a legalidade de cobrança pelo estacionamento na via pública e os motivos que levam o órgão executivo de trânsito municipal a estabelecer a rotatividade de vagas.

Prevê o artigo 24, inciso X, do CTB, que “Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição,... implantar, manter e operar sistema de estacionamento rotativo pago nas vias”, sendo certo que, por disposição do § 2º do mesmo artigo, para exercer tal competência, o Município deve estar integrado ao Sistema Nacional de Trânsito, nos termos da Resolução do CONTRAN nº 106/99.

A previsão acima transcrita representa inovação do CTB, não encontrando equivalência específica no revogado Código Nacional de Trânsito (Lei nº 5.108/66), cujo Regulamento (RCNT – Decreto nº 62.127/68) limitava-se, em seu artigo 37, inciso I, a estabelecer, genericamente, que “Compete aos Municípios, especialmente: ... regulamentar o uso das vias sob sua jurisdição, considerando o disposto no art. 46” e este, por sua vez, abrangia, em seus incisos IV e VI, a possibilidade da autoridade de trânsito “fixar áreas de estacionamento” “determinar restrições de uso das vias ou parte delas, mediante fixação de locais, horários e períodos destinados ao estacionamento, embarque ou desembarque de passageiros e carga e descarga”.

Entretanto, a criação de áreas destinadas ao estacionamento rotativo pago não teve início após a vigência do atual Código de Trânsito, já que o município de São Paulo, por exemplo, criou a “zona azul” ainda na década de 70, mais precisamente em 30/12/1974, por meio do Decreto nº 11.661/74, o que nos obriga à reflexão sobre o embasamento legal de sua instituição, que, como visto, não se circunscreve ao inovador artigo 24, inciso X, do CTB.

A cobrança pela utilização de um bem público decorre de previsão do Código Civil Brasileiro, o qual classifica as ruas, estradas e praças como exemplos de bens públicos de uso comum do povo e, portanto, permite que o poder público estabeleça o pagamento pelo estacionamento nas vias terrestres, possibilidade, aliás, que encontra guarida em nosso ordenamento jurídico desde o século passado, já que o Código Civil de 1916 trazia idêntica previsão à atual disposição legal:
Código Civil (Lei nº 10.406/02):
Art. 99. São bens públicos:
I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;...”
Art. 103. O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem”.

Desta forma, legislação municipal que cria o estacionamento rotativo pago não se classifica nem mesmo como legislação de trânsito (até porque, se assim o fosse, seria tida como inconstitucional, já que compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transportes, nos termos do artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal), mas possui natureza jurídica estritamente administrativa, equivalente à cobrança de donos de bancas de jornais ou de comércio ambulante pela utilização de trecho da calçada, por exemplo; ou seja, cobra-se pela utilização de determinado bem público não apenas para auferir renda com o seu uso privado (o que acaba sendo também uma inevitável conseqüência), mas para possibilitar justamente este uso particular, posto que, no caso da “zona azul”, o condutor que ali estaciona está privando outro de fazê-lo.

E é justamente este conflito de interesses que determina a criação de espaços destinados à “zona azul”, isto é, o órgão executivo de trânsito municipal seleciona aquelas áreas em que a procura seja superior à quantidade de vagas existentes, como, por exemplo, as áreas comerciais ou de grande afluxo de veículos, possibilitando o uso destas vagas de maneira igualitária, o que explica o adjetivo “rotativo” na expressão utilizada pelo Código de Trânsito, não havendo a necessidade de cobrança pelo estacionamento naquelas outras em que as vagas sejam suficientes para atender a demanda; em outras palavras, presente a necessidade de rotatividade de vagas, cobra-se pelo uso temporário e particular do espaço público.

A título de exemplo, interessante consignar que, no município de São Paulo, das 31.000 vagas destinadas para o estacionamento rotativo pago, 50 % está concentrado na área central da cidade, segundo dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET/SP).

Temos, assim, duas questões legais a justificar a criação do estacionamento rotativo pago: a possibilidade genérica de cobrança pelo uso de bem público e a competência específica, determinada pelo Código de Trânsito, para que o órgão executivo de trânsito municipal possa implantar, manter e operar o sistema, serviço público cuja prestação deve seguir as regras estabelecidas pelos artigos 30, inciso V, e 175, ambos da Constituição Federal (CF/88):
Constituição Federal:
Art. 30. Compete aos Municípios...
V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;...”
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

Ao analisarmos tais disposições constitucionais, verificando-se, em especial, a possibilidade de concessão do serviço público, é possível atribuirmos outra característica ao valor cobrado pelo estacionamento na “zona azul”, que é o caráter retributivo, pois a tarifa estabelecida passa a ser a contraprestação pelo serviço público, devida à concessionária e custeada diretamente pelo usuário.

Esta concessão onerosa, instituída nos termos da Lei nº 8.987/95 e conforme o contrato firmado, após a necessária licitação, classifica-se como concessão comum, denominação que se tornou mais expressiva, após a edição da Lei nº 11.079/04, que versa sobre a contratação de parceria público-privada, e dispõe em seu artigo 2º, § 3º, o seguinte:
Art. 2º...
§ 3º. Não constitui parceria público-privada a concessão comum, assim entendida a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando não envolver contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.”

Apesar da possibilidade de prestação do serviço público pela iniciativa privada, na conformidade apresentada, cabe ao poder concedente regulamentar o serviço concedido e fiscalizar permanentemente a sua execução, aplicando, ainda, as penalidades regulamentares e contratuais, como prevê o artigo 29, incisos I e II, da Lei nº 8.987/95.

Assim, as irregularidades constatadas na utilização de espaços destinados ao estacionamento rotativo pago, como falta de cartão, cartão rasurado, ou horário excedido, não precisariam, necessariamente, configurar INFRAÇÕES DE TRÂNSITO, podendo ser classificadas como INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS, estabelecidas diretamente na legislação municipal, com penalidade própria, cujo valor arrecadado não possui vinculação com a arrecadação de multas de trânsito, mas se trata de receita pública não tributária e cuja eventual cobrança poderia ser efetuada diretamente pela concessionária.

Não obstante, como alternativa a esta opção (legalmente válida, mas sem precedentes práticos por mim conhecidos), é possível adotar a aplicação de multa de trânsito aos que desobedecerem à regulamentação estabelecida, como tem ocorrido, mas, para isso, imperioso que se obedeçam aos requisitos estabelecidos para a imposição de penalidades de trânsito, na conformidade do Código de Trânsito Brasileiro, começando-se pelo fato de que o serviço público objeto da concessão circunscreve-se apenas à implantação, manutenção e operação do sistema de estacionamento rotativo pago, nunca a fiscalização à luz do CTB, tendo em vista que a aplicação de multa de trânsito depende da comprovação determinada pelo § 2º do seu artigo 280, como a constatação pelo competente agente de trânsito.

A indelegabilidade da fiscalização de trânsito reside no fato de que o controle do cumprimento das normas de trânsito fundamenta-se no poder de polícia administrativa de trânsito, faculdade que é inerente à Administração pública e, portanto, não pode ser exercida por particulares.

Neste sentido, cabe ressaltar que o Ofício de integração do município ao Sistema Nacional de Trânsito, cujo modelo é disponibilizado pelo DENATRAN, em sua homepage, ao relacionar as atribuições do órgão executivo de trânsito municipal, estabelece que, quando terceirizado o serviço de implantação, manutenção e operação do sistema de estacionamento de “zona azul”, deve o órgão municipal fiscalizar a sua utilização.

Quanto à infração de trânsito, verificamos que, diferentemente do que ocorre com o não pagamento do pedágio, que caracteriza infração específica (artigo 209 do CTB), o não pagamento da tarifa de “zona azul”, ou qualquer outra irregularidade no uso do espaço a ela destinado, configura a infração de trânsito genérica estabelecida no artigo 181, XVII, anteriormente transcrito, posto que a publicidade do estacionamento rotativo pago ocorre com a implantação de sinalização de regulamentação, placa R-6b (estacionamento regulamentado), com informação adicional obrigando a utilização do cartão respectivo.

O Anexo II do CTB, que trata da sinalização de trânsito brasileira, ao tratar das placas de regulamentação e prever a possibilidade de informações adicionais, utiliza como exemplos da placa R-6b, as destinadas a regulamentar o ponto de táxi, o estacionamento rotativo pago, a carga e descarga e o local para estacionamento de deficientes físicos, o que é complementado pela Resolução do CONTRAN nº 180/05, que, versando sobre os princípios de utilização da placa R-6b, esclarece que o sinal deve ser utilizado para “regulamentar as condições específicas de estacionamento de veículos, através de informação complementar, tal como categoria e espécie de veículo, carga e descarga, ponto de ônibus, tempo de permanência, posicionamento na via, forma de cobrança, delimitação de trecho, motos, bicicletas, deficiente físico”.

Toda vez, portanto, que a placa R-6b for instalada em determinado local, somente estará caracterizada a infração de trânsito se for desobedecida a regulamentação que se encontra expressa na sinalização, ou seja, se um automóvel que não é táxi estaciona no ponto destinado àqueles veículos de aluguel, comete infração do artigo 181, XVII, assim como ocorre com o veículo que estaciona na posição perpendicular em local sinalizado, determinando-se a posição de 45º.

De igual sorte, se a placa R-6b possui a informação adicional “zona azul - obrigatório uso de cartão”, quando a infração estará caracterizada? Obviamente, toda vez que o veículo ali é estacionado, sem que coloque o devido cartão (ou se o cartão não é válido, por qualquer motivo). Por esta razão, é que não se pode vincular a aplicação de penalidades aos eventuais infratores a qualquer forma de regularização, ou seja, ou o veículo ESTÁ estacionado em desacordo com a regulamentação e DEVE ser autuado, ou o veículo NÃO ESTÁ estacionado em desacordo com a regulamentação e NÃO DEVE ser autuado – simples assim!

Obrigar o condutor do veículo a se dirigir à concessionária do serviço para efetuar o pagamento de “taxa de regularização” (que não é tarifa, nem multa, mas pura ARRECADAÇÃO ADICIONAL para a empresa privada), sob pena de, não o fazendo, ser multado pelo órgão de trânsito, além de ilegal, é imoral e equivale a condicionar a aplicação de multa por desobediência ao semáforo vermelho, por exemplo, apenas àqueles que não pagarem um determinado valor, pré-estipulado, como substituição à penalidade.

Ao adotar esta prática, ora combatida, o poder público, que deveria fiscalizar tanto a concessionária do serviço público, quanto a obediência à sinalização de trânsito, acaba se tornando o verdadeiro promotor da irregularidade, pois exige uma vantagem indevida, para deixar de impor a pena que deveria, diante da constatação do cometimento de infração de trânsito, já que o pagamento da “taxa de regularização” não elimina o fato de que a infração foi efetivamente cometida e, desta forma, dever-se-ia aplicar o disposto nos artigos 280 e 161 do CTB, isto é, elaborar-se o auto de infração, pela conduta observada e, a partir dele, aplicar a penalidade de multa cabível.

Diante do exposto, não é exagero reconhecer que tal prática denota a existência até mesmo de indícios dos crimes de Concussão e Prevaricação, previstos, respectivamente, nos artigos 316 e 319 do Código Penal, a serem apurados pela competente polícia judiciária, senão vejamos:
Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/40):
Concussão
Art. 316. Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida.
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.



Prevaricação

Art. 319. Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer sentimento ou interesse pessoal.
Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.


Concluindo:

- A cobrança pelo estacionamento na via pública justifica-se pela necessidade de garantir a rotatividade de vagas, democratizando-se o uso do espaço público e tem como base o disposto no Código Civil, relativo ao uso dos bens públicos;
- A implantação, manutenção e operação do sistema de estacionamento rotativo pago é um serviço público, de competência dos municípios integrados ao Sistema Nacional de Trânsito, por intermédio do respectivo órgão executivo de trânsito municipal, podendo ser objeto de concessão à iniciativa privada, mediante licitação, conforme o artigo 175 da Constituição Federal e nos termos da Lei nº 8.987/95 e cláusulas contratuais;
- Quando terceirizado o serviço, o poder público mantém a incumbência de fiscalização, tanto da concessionária, quanto dos usuários, constituindo o pagamento da tarifa, neste caso, exatamente o ônus que justifica a prestação do serviço pelo particular, sem o que não haveria o interesse privado por sua realização;
- O estacionamento de veículo sem o respectivo cartão ou com o cartão inválido, pode caracterizar INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA, cuja pena deve ser prevista na regulamentação estabelecida pelo poder público e alvo de cobrança pela própria concessionária, não se vinculando aos quesitos para a imposição de multas de trânsito ou, então, caracterizar INFRAÇÃO DE TRÂNSITO, por descumprimento à regulamentação constante na placa de sinalização e, neste caso, constatada a infração, deve ser elaborada a correspondente autuação, pelo competente agente de trânsito que a comprovar, não podendo estar condicionada ao pagamento de “taxa de regularização”, nem se basear em constatação efetuada pelo funcionário da concessionária;
- A exigência de vantagem indevida, bem como a omissão na adoção de providências determinadas em lei, podem in tese caracterizar os crimes de Concussão e Prevaricação, praticados pelo funcionário público responsável.

- Por fim, como Conselheiro do Conselho Estadual de Trânsito de São Paulo, cabe destacar o posicionamento unânime do CETRAN, contra a prática aqui discriminada, o que tem gerado o deferimento de todos os recursos, em segunda instância, contra multas de trânsito aplicadas com base em “aviso de irregularidade” elaborado por funcionários de concessionária do estacionamento rotativo pago, o que restou consignado com aprovação de Parecer de minha lavra, constante da Ata da 19ª Sessão Extraordinária de 2005 e publicado no Diário Oficial do Estado de 11/05/05.

Do Portal Direitonet

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